silvia

Capítulo 1. Um dia… repetitivo!



8 de maio de 1978

Você vai mesmo deixar sua mãe fazer isso comigo de novo?!

Uma pergunta sem medo, sem raiva, sem mágoa. Na verdade, sem qualquer emoção. Havia ali apenas curiosidade pontual e talvez por isso, soasse tão ameaçadora.

A atenção de Melissa estava voltada para exclusivamente para o noivo. Apenas o que ele diria era do seu interesse.

A pergunta também era capciosa. Dessas que nos direciona a repostas que podem mudar vidas. Ecoou pela sala de espera da Clínica de Saúde da Família como o vento frio que precede a tormenta. Para uns de agradável frescor, para outros, como um calafrio medonho.

Enquanto todos reagiam a questão, a moça que a proferiu aguardava com um quê paradoxal de interessada indiferença. De algum modo, a resposta era menos relevante que causar mal-estar ao futuro esposo.

O noivo, de sua parte, encolheu-se, acovardando-se como um moleque frente a uma matrona. Todos ali, inclusive ele, reconheciam sua pequenez frente a futura esposa.

A aparência eternamente bela, fresca e serena era a característica que mais irritava na jovem noiva de Betinho Alencar. Sua desatenção rotineira ao que considerava irrelevante ou desnecessário era um tiro no peito de quem, naquele caso, a sogra, queria tirar sua paz. É muito difícil brigar com quem ignora provocações e Melissa era do tipo altiva, sempre superior a coisas corriqueiras.

Você vai deixar essazinha falar assim com sua mãe, Betinho?

O noivo olhou furtivamente para sua genitora, tentando escapar de uma resposta que talvez colocasse tudo a perder, embora soubesse que aquela era mais uma tramoia dela para impedi-lo de cometer o que considerava uma loucura: casar com uma moça muito abaixo de seu nível social.

Acabar com aquela união era uma meta de vida e questão de honra para a Hortência Gomes Alencar.

“…há tantas moças bem-nascidas querendo se tornar sua esposa, filhinho!”

Era um lamento constante que jovem noivo buscava ignorar. Até aquele momento, Betinho acreditava ser capaz de ficar com a mulher que amava e manter a relação estreita que o unia a mãe. Uma tolice desmedida... ou escolhia o lado certo, ou seria abandonado no dia do casamento.

Aquelas duas eram como locomotivas sem freio em rota de colisão.

“…apenas uma doida aceitaria casar com um filho de sua mãe, Betinho, mesmo com todo dinheiro da nossa família.”

O comentário de uma de suas primas no último jantar e família sintetizava o seu dilema.

Buscou na sala algum aliado que o ajudasse a lidar com seu dilema. Se o pai estivesse ali...

A mãe de Melissa, diferente da filha, estava preocupada. Encolhida contra a cadeira, rezando para que aquele passeio inesperado terminasse bem.

Embora a noiva se mostrasse indiferente a fortuna do noivo, seus pais estavam indisfarçavelmente encantados com ela. Donos de uma peixaria num bairro popular da cidade, estavam extasiados com o fato da filha ter pescado um belo peixe.

*~*~*



Do seu canto, Dona Hortência, mãe do noivo, ergueu uma sobrancelha numa expressão de triunfo. Ao longo dos três últimos anos tentou de tudo para tirar aquelazinha do sério, tendo conseguido apenas em pontuais situações. Aparentemente, a única coisa capaz de irritar a serigaita era a permissividade do Betinho. Aquele pequeno encontro ao amanhecer era o primeiro de uma série de eventos militarmente planejados. Até o fim daquele dia, cavaria pelo menos um adiamento da cerimônia, senão um improvável cancelamento definitivo.

A vagabundazinha pensava que era gente e se dava ao luxo de ser temperamental.

Eu preciso de uma resposta Alberto. — Exigiu a noiva impaciente. Ela era a única pessoa que tratava o rapaz pelo nome de batismo.

Dona Hortência prendeu a respiração. Esperava que a insegurança e necessidade de agradar a todos do filho, acompanhado de toda tensão dos preparatórios para o casamento irritassem sua nora. Irritassem ao ponto dela fazer uma loucura.

A última chance de acabar com aquele despautério de maneira limpa residia naquelas últimas cartadas.

Quando irritada, Melissa atropelava qualquer um que atravessasse seu caminho. O jovem noivo não estava iludido quanto ao seu temperamento. No fundo, a mãe de Betinho intuía que mesmo o gênio forte da moça o atraía.

Ainda que conhecesse e aceitasse as limitações de um sujeito criado por uma mãe zelosa, Melissa também sabia estabelecer seus próprios limites e quando se aborrecia de verdade, sinalizava de forma barulhenta e contundente. Ela era boa em colocar bastas.

Aí que morava o perigo e maior esperança de dona Hortência: as reações desproporcionais da nora tinham efeitos fortes no filho e entre as duas, Betinho sempre a ficava ao lado da rapariga. Se a moça o quisesse depois de repetidas provas do rapaz ser incapaz de colocar freio nos desmandos da própria família, ele provavelmente romperia com a própria mãe. Então, irritar a noiva e forçá-la a uma decisão era o principal foco de seus planos.

A mulher admitia que seu filho Alberto, carinhosamente chamado de Betinho por aqueles que nutriam algum sentimento por ele, fosse apreço ou dissimulado desprezo, era um sujeito mimado e limitado. Ele possuía tudo: advogado por gosto, herdeiro industrial. Era competente no exercício do direito e possuía tino inato para os negócios, embora ainda fosse um tanto imaturo no campo afetivo. Era noivo da mulher mais bela que a maioria de seus amigos já havia posto os olhos. Uma mulher dissimulada que o exploraria para o resto da vida, gastando cada centavo que sua boa sorte e talento trouxesse.

Mesmo de origem humilde, a filha do peixeiro tinha classe e elegância natural. Era esperta e observadora, o que a fazia aprender tudo muito rápido. Saia de situações potencialmente vexatórias com graça que normalmente encantava a todos. Ou quase todos. A maioria das mulheres se sentiam intimidada com sua beleza e carisma.

O namoro já nasceu com a promessa de compromisso. E essa promessa ganhou forte oposição de Dona Hortência. Nunca escondeu que se dependesse dela, a nora seria assassinada com requintes de crueldade. Aliás, a única coisa que a impedia de contratar um assassino de aluguel era o fato de que o filho e o marido, mesmo que a polícia nunca pudesse ligá-la ao caso, saberiam de sua participação e nunca a perdoariam.

*~*~*

Betinho reconhecia sua sorte. Apesar da haver uma distância colossal nos status sociais dos noivos, o advogado teve muita dificuldade em conquistar a moça.

Desde o primeiro momento, Melissa deixou bem claro que não iria se envolver com um homem que só a queria para amante. E de fato, o primeiro pensamento de Betinho ao conhecer a bela foi uma conquista fácil. Talvez se o interesse persistisse, colocar a amante em uma casa em um bairro discreto para viver sua paixão sossegado, enquanto escolheria uma moça de boa família para ser a mãe de seus filhos legítimos.

Foi exatamente essa situação descrita por ela ao enxotá-lo da peixaria após algumas visitas, deixando bem claro que nunca se prestaria a esse papel.

Querido, você é rico e bonito. Procure uma moça que fique impressionada com isso. Eu me respeito muito pra aceitar esse tipo proposta de qualquer pessoa.

Era essa franqueza que incomodava o advogado. Ele até tentou desistir da sua conquista por conta dela, mas quanto mais era rejeitado, mais apaixonado ficava. Durante quase um ano, o moço que possuía tudo, ficou obcecado pela mulher que disse o não mais contundente que já ouviu. E quando o sim dado, foi condicionado: ele falou com os pais da moça para assumirem um compromisso antes do primeiro encontro oficial e na mesma semana, apresentou a noiva para os pais.

Sob a aparência calma, daquela vez a noiva estava irritada. Betinho a conhecia o suficiente para saber que os olhos dela de alguma forma mudavam quando se sentia ofendida. E sob aquela faixada serena, havia um turbilhão nascendo.

Qual o problema? Você tem algo a esconder? — Provocou a sogra.

Os olhos gélidos de Melissa abandonaram o noivo, se voltaram para Dona Hortência e demoraram ali, num examine que constrangeu e irritou a mulher mais velha, que odiava com todas as força de sua alma a petulância daquela mocinha. Ela possuía uma altivez descabida para alguém que mal tinha o que comer. Só mesmo o paspalho do seu filho para não perceber que aquela lambisgoia tinha apenas um interesse: dá o golpe do baú.

A filha do peixeiro com pose de rainha herdaria o bom nome e a fortuna dos Alencar se ninguém fizesse nada.

Você pode desistir do casamento se um simples exame é tão insultante assim! — Instigou um pouco mais.

Mãe! — O noivo enfim se pronunciou indignado.

A senhora percebia o nervosismo do filho e que talvez ele ficasse algum tempo aborrecido com ela.

Bem, o que era um pouco de mágoa para uma mãe zelosa? Era sua obrigação salvar seu menino daquela mulher.

Vamos minha filha, não é nada demais. Apenas faça. — A mãe da noiva tentou acalmar os ânimos.

Norma vivia preocupada que a outra estragasse a sorte grande de sua filha. Apesar de saber que sua menina era uma belezura, nem em seus sonhos mais insanos imaginou que ela se casaria com o filho de um industrial, um advogado, que além de herdar fábricas do pai, era sócio em um dos maiores escritórios de advocacia da cidade. Uma oportunidade assim só surgia uma vez na vida.

Os olhos de Melissa ainda estavam na sogra. Um silêncio cheio de expectativa aguardava uma reação da noiva.

O doutor a aguarda. — Informou a enfermeira indiferente ao drama familiar.

Vamos esquecer isso! — Decretou por fim o noivo. Naquele dia se tornaria um homem casado, era hora de se portar como tal.

Alberto Gomes Alencar!

Chega mamãe! Eu confio em minha noiva, já passamos por isso antes e como sempre, suas desconfianças foram infundadas.

m-ma...

A mulher ainda tentou balbuciar algo, mas estava engasgada na própria indignação.

Eu faço. — Informou Melissa por fim com algo de fúria e satisfação no olhar, parecia que até aquele momento havia aguardado o posicionamento do noivo e estava satisfeita com o resultado. — Vamos acabar com isso de uma vez.

Aparentemente, Betinho passou num teste que nem sabia que estava fazendo.